Rizzatto Nunes
Dou hoje minha opinião, que será estritamente jurídica sobre a atual lei seca que
está dando o que falar. Deixo claro desde logo que, sinto-me bastante à vontade para
tratar do assunto do modo como farei, porque na minha coluna de 04 de fevereiro
deste ano, aqui publicada, tinha elogiado a posição do Governo Federal em proibir a
venda de bebidas alcoólicas à beira das estradas, como continuo acreditando que é
preciso ir além: penso que de deve proibir a venda desse tipo de bebida em
supermercados, permitindo a venda apenas em locais específicos e autorizados em que
só entrem maiores de idade; penso também que deve ser proibida toda publicidade de
bebidas alcoólicas etc. O Estado deve mesmo fazer algo, mas sempre respeitando as
garantias constitucionais de um verdadeiro Estado de Direito.
Quando era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta,
sonhava - todos nós sonhávamos - um dia ver a democracia real instituída no Brasil.
A ditadura acabou, vieram as eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando
surgiu a Constituição Federal de 1988, nossa esperança aumentou: afinal era o
melhor, mais democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao
cidadão jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro do
túnel.
Muito bem. O tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real
Estado Democrático de Direito. Como estudante de direito já há 33 anos ficou triste
e até, diria, um pouco descorçoado.
É incrível como o Poder, em todas as esferas, viola com seus procedimentos as
garantias constitucionais. Foi-se a ditadura, mas permaneceu a mentalidade
profundamente enraizada do autoritarismo.
As ações policiais, por exemplo, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e
investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitze, que
normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de atrapalhar a vida
dos cidadãos, que já têm muita dificuldade de se locomover pelas ruas das cidades.
Veja o caso da atual e chamada lei seca e das ações praticadas contra os cidadãos de
bem. A pessoa é parada na via pública pela polícia, apenas e tão somente porque
acabou de sair de um restaurante. Pergunto: qual o elemento objetivo e legal que
permite esse tipo de abordagem? Nenhum. Não há suspeita, não há comportamento
perigoso, não há desvio de conduta nem manobra capaz de causar dano a outrem.
Há, apenas, o fato de estar dirigindo um veículo após ter saído de um
estabelecimento comercial ou nem isso: apenas porque está passando naquele local
naquele momento. Isto é, trata-se de uma circunstância corriqueira de exercício da
cidadania. Nessas condições a abordagem é ilegal. É assombroso, para dizer o mínimo.
De onde o Estado extrai o direito de evitar a locomoção de um pai de família que sai
para jantar com sua esposa ou filhos? Ou com amigos, depois de um árduo dia de
trabalho?
Dou exemplo de quando é possível a abordagem: se a pessoa entra cambaleando num
veículo para dirigi-lo, eis o dado objetivo. Nesse caso o policial é testemunha
ocular e tem o dever de agir. Ou, se o veículo faz zigue-zague na rua, é preciso
pará-lo. Na verdade, se é para fazer blitz, então é muito mais simples manter
policiais em cada porta de bar, danceteria, boate, discoteca, rave ou o que seja e
impedir que o ébrio entre no veículo.
Mas, se a pessoa está na rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção
assegurado constitucionalmente, não pode ser abordado e nem se lhe pode impingir
conduta que ele não se disponha a fazer, sem base objetiva para tanto, como por
exemplo, exigir o teste do bafômetro.
Eu digo isso, apenas e tão somente porque as leis não estão sendo cumpridas. Vamos a
elas, então.
Em primeiro lugar, leia a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito
Brasileiro (CTB): "Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com
concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas,
ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine
dependência".
Muito bem. Trata-se de um crime de perigo, mas perigo concreto real, ao contrário do
que as autoridades policiais estão adotando. O Professor Luiz Flávio Gomes, em
artigo publicado no site Migalhas, deixou clara qual deve ser a interpretação do
referido dispositivo.
Diz ele que não basta ter ingerido certa quantidade de álcool. É preciso também
estar sob influência dele. Isso porque, conforme ensina o professor, a segunda parte
da regra legal ("sob influência de qualquer outra substância...") deve valer também
para a primeira parte que trata do álcool. E ele está certo, pois a disjuntiva "ou"
remete o conteúdo da segundo parte do texto à primeira parte.
Dou também outra razão: a própria lei 11.705 que alterou o CTB assim o diz. O seu
art. 7º alterou a lei 9.294/96 modificando a redação do art. 4º-A dessa lei, que
passou a ter a seguinte dicção: "Art. 4º-A Na parte interna dos locais em que se
vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e
ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção."
(grifei)
Pergunto: o que significa "estar sob influência"? O professor Luiz Flávio Gomes
responde: estar sob influência exige a exteriorização de um fato, de um plus que vai
além da existência do álcool no corpo.
No caso em discussão, esse fato seria a direção anormal. No exemplo que dei acima, a
direção em zigue-zague. Caso contrário, como diz o citado jurista, estar-se-ia
violando o princípio constitucional implícito da ofensividade, pois a mera ingestão
de álcool sem significar perigo concreto ainda que indeterminado, geraria tipo penal
de um crime abstrato, algo inadmitido no direito.
E, em reforço lembro, citando mais uma vez o professor, que para a caracterização da
infração administrativa, o art. 165 do CTB, também alterado, dispõe: "dirigir sob
influência do álcool". Logo, se para a mera infração administrativa (que é o menos)
há que se constata influência, para o crime (que é o mais) com muito maior razão.
Pergunto agora: Pode a polícia parar o veículo e submeter toda e qualquer pessoa ao
exame do bafômetro? A resposta é não e por vários motivos. Primeiro, porque para
abordar qualquer cidadão é preciso lei que autorize ou dado objetivo que permita. O
direito de locomover-se livremente é assegurado constitucionalmente (Art. 5º, XV,
CF).
Segundo, porque ainda que o motorista tenha ingerido álcool, isso não basta, pois
deve se poder constatar um fato objetivo que gere perigo concreto, real decorrente
de sua influência.
Terceiro, porque ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo. Se em
algum caso, puder se constatar a influência do álcool por elementos exteriorizados
objetivamente, então, nesse caso, a prisão há de ser feita com base em testemunhas e
não mera suspeita infundada do policial ou por ordem direta de seus superiores que
criaram uma suspeita em abstrato e geral.
Porém, digo mais. Guardados os limites de cada caso de abordagem, pode se dar outro
crime: o de abuso de autoridade. A lei 4.898 define os crimes de abuso de autoridade
(ironicamente é uma Lei do período autoritário: 09 de dezembro de 1965). Dentre
eles, destaco o atentado à liberdade de locomoção e o atentado à incolumidade física
do indivíduo (art. 3º, "a" e "i").
É um crime doloso, que demanda ânimo de praticá-lo e pode se dar também por omissão,
como demonstram, as várias decisões judiciais condenando administradores públicos em
geral elencadas pelos Profs. Gilberto e Vladimir Passos de Freitas no livro "Abuso
de Autoridade" (Publicado pela Editora Revista do Tribunais, 9ª, ed, SP:2001).
Assim, se o indivíduo não está praticando nenhum delito, a autoridade fiscal ou
policial não pode levá-lo preso. O crime pode estar sendo cometido tanto pela
autoridade que lhe prende, como pela que não lhe solta. É possível, pois, processar
a autoridade pelo crime de abuso.
No assunto atual das blitze de lei seca, pode surgir uma dúvida em relação à quem
está praticando o abuso, pois o policial civil ou militar está cumprindo ordem
superiores. Nesse caso, se a ordem não é manifestamente ilegal, quem comete o crime
é o comandante da operação ou seus superiores, que pode chegar até mesmo ao
Secretário de Estado responsável, pois desses se espera o cumprimento estrito do
sistema constitucional em vigor.
De todo modo, deixo anotado que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, disse
com todas as letras que "sendo exigível dos agentes da lei o conhecimento da
garantia constitucional de que ninguém, salvo o flagrante, pode ser detido e preso a
não ser por ordem da autoridade judiciária competente, seu descumprimento configura
abuso de autoridade manifesto, que não exime de responsabilidade o superior e seus
subordinados" (Decisão publicada na revista RJTJRS 170/138 e citada na obra dos
irmãos Passos de Freitas).
O trágico nessa história é que, enquanto cidadãos de bem são abordados por policiais
armados em alguns pontos das cidades, em outros pontos cidadãos de bem estão sendo
assaltados por bandidos armados. Em comum a violência e o abandono.
Afora o fato de que esse tipo de blitz acaba deixando um rastro. Quando elas
cessarem, porque cessarão, deixarão no ar a possibilidade da ilegal abordagem de
quem quer que seja e, nesse momento, os policiais menos escrupulosos aproveitarão
para "engordar o caixa". Mais um procedimento que facilita a corrupção. Outra coisa
para se lamentar.
Não posso, como professor de Direito, depois de quase trinta anos de magistério,
ficar tranqüilo com o que vejo. Aliás, nem eu nem ninguém que estude direito, porque
ao invés de ver surgir o tão almejado Estado de Direito Democrático, o que assisto
todo dia e cada vez mais é uso de um modelo de ação estatal que não tem na lei
maior, infelizmente, sua base.
Rizzatto Nunes é mestre e doutor em Filosofia do Direito e livre-docente em Direito
do Consumidor pela PUC/SP. É desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Autor de diversos livros, lançou recentemente o "Bê-a-bá do Consumidor" (Editora
Método). Coordena um site voltado ao Direito do Consumidor e à Defesa da Cidadania,
no qual tem seu blog: www.beabadoconsumidor.com.br
Fale com Rizzatto Nunes:
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